sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

D'a Intervenção Divina, D'o Medo e D'o Destino

Dia 25 de Dezembro, noite de Natal na maior parte das mentes.

Um personagem C, sombriamente decidido desce o prédio das escadas. Anoiteceu há pouco. uma noite que vem acompanhada pela chuva, ou uma chuva que convidou a noite para jantar, já que a chuva fazia parte da rotina há mais de uma semana.
Vários meses passaram desde a última vez que a tinha visto. Nada fazia prever uma melhoria nesse aspecto. É então que ele utiliza toda a sua motivação extra para ir à procura dela, no único momento do ano em que saberia exactamente onde a encontrar.
Fez-se à estrada no velho Visa branco, velho mas com a garra desses novos, que não duram o terço do que ele já havia durado. Acompanhado apenas de uns mapas chochos no telemóvel e do seu sentido de orientação ligeiramente acima da média, partiu para uma viagem de várias horas a um local onde nunca tinha ido. Um local que ficava afastado vários quilometros da cidade mais próxima. Vários quilometros de o que quer que fosse que ele pensasse conhecer.

A chuva era uma constante. Ora miudinha e intensa, ora miudinha e inexistente. Nos momentos de intensidade extra ele pensava para consigo "a linha entre a motivação extrema e a ténue loucura é fina, muito fina... E eu neste momento sinto-me como um equilibrista a caminhar sobre ela."
A verdade é que aquela viagem era um risco constante. Estradas desconhecidas, sinuosas e velhas sem qualquer tipo de segurança, um carro ainda mais velho, chuva constante e uma noite cerradíssima com periodos de nevoeiro intensos..
Por várias vezes se perdeu, por várias vezes voltou para caminhos anteriores, inventou atalhos que não estavam planeados, seguiu o instinto correctamente, seguiu o instinto erradamente. A verdade é que não era fácil encontrar uma aldeia perdida no meio de nenhures, numa noite de Natal em que não se vê vivalma.
Haveria uma centena de hipóteses de ele se enganar num dos caminhos frequentados provavelmente por tractores de mês a mês e de seguir durante vários quilometros uma estrada perdida, só para descobrir que se tinha afastado ainda mais.
Mas não...

A calma que lhe transbordava dos olhos firmes e decididos durante toda a viagem. Essa calma aliou-se a uma qualquer entidade superior que o guiou com o mínimo de entraves até aquela aldeia.
Sentia-se em terreno proibido. Um local que não lhe pertence, de onde ele não é, onde nunca será bem vindo. Contornou aquelas ruas silenciosas como a morte, como se ele próprio fosse o vulto da tragédia.
Como se tivesse descido aos infernos sorrateiramente para efectivar qualquer missão. E agora por lá vagueava, tentando passar o mais despercebido possível.

A verdade é que a calma transbordante da viagem, tinha dado lugar a um medo gélido. Um medo petrificante. É fácil ser-se corajoso quando é para o ser sozinho. Imaginar o que ela pensaria ao vê-lo ali... A chegar, completamente desnorteado. irrompendo pela sua tranquila ceia de Natal familiar. Ela que provavelmente nem o queria ver.
Tudo isso o trouxe de volta à realidade. E no momento seguinte, o medo gélido converteu-se em tremores corporais e em incapacidade de levar a cabo a tarefa a que se tinha proposto.
Ao percorrer silenciosamente aquelas ruas quase sentia o bafo do seu eu perdido, de tão próximo que ele estaria ao fim de tantos meses.

Pegou toscamente no telefone e marcou o número. Pensando para si próprio que uma chamada a desejar bom Natal seria o suficiente para o seu coração amargurado e para justificar uma viagem de tantas horas. Nem precisava dizer-lhe que estava por ali..
Ligou e..
"Serviço de Voice Mail.."

- Desligado?! - murmurou

Sim, desligado... Infeliz personagem nem fazia ideia que a miuda tinha mudado de número.

Costumava achar-se uma pessoa mais de fins do que de meios. A verdade é que nunca lhe interessava muito a forma como as coisas eram feitas, desde que o resultado final fosse o pretendido. Mas aí estava ele, a voltar para trás depois de uma viagem tenebrosa e injustificada. E a pensar como se sentia mais leve. No fundo o que ele precisava mesmo era daquela viagem. Aquela viagem tornava-o forte, tornava-o adulto e insensível. Era disso que ele precisava.


A cerca de 5 quilometros da aldeia ele pára o carro numa berma pronunciada. Sai do carro, desaperta a braguilha e alívia a vontade esquecida há várias horas. Fecha a braguilha, olha o céu estrelado uma e outra vez. Olha a Lua e os seus reflexos nas nuvens espalhadas pela grafite.
Murmura:

- Se me fizeste vir até aqui. Esquecer o que sou, o que é suposto ser, como é suposto agir. Se me trouxeste aqui tão tranquilamente... Fizeste-me esquecer a minha condição de humano e seguir um designio, uma vontade, uma emoção, um nada... Se me fizeste isto tudo e me trouxeste aqui com tanta facilidade, como se fosse suposto tudo isto acontecer, então porque me falhas no momento crucial?

Olha de novo as nuvens e apercebe-se... Arregala os olhos e sorri, perante a revelação que acabava de ter.

- Na verdade, não foi o destino traçado que te levou a guiar-me até aqui. Nada disso. O que se passa é algo de eterno, de lendário, de fenomenamental. Algo mais antigo que a própria História em si. É algo que levou à própria criação da História. À própria necessidade de descrever feitos e de os relembrar. É a própria matéria dos Deuses que me corre no sangue neste momento.
A motivação! É a motivação que te leva a ser condescendente. A ausência do medo e a presença da vontade... da vontade de saír da condição humana por um objectivo.
Há cerca de 10 minutos quando voltei a caír na realidade e na minha condição humana. Quando o medo se apoderou de mim de tal forma que o objectivo se tornou secundário. Foi aí que me abandonaste.
E é aí que não te falharei desta vez!"

Decidido, pega no carro e volta para trás. Alguns metros adiante, vê um Citroen à sua frente. O primeiro sinal de vida desde há imenso tempo.
"É um sinal!"
Segue o carro que o leva de volta à aldeia. Com forças redobradas vai passando pelas ruas atrás do Citroen. Cruza uma rua e outra e outra e na quarta precisamente, ao olhar para a sua direita, vê-a.
O vestido, as botas, o cabelo. Só podia ser ela! Só podia ser ela. A entrar para uma casa. Só podia ser ela...
Faz rapidamente inversão de marcha e estaciona num local discreto de onde consegue observar a casa.
10 minutos, 20 minutos, 30 minutos. Perdeu a noção do tempo enquanto esperava um qualquer sinal. Quando já havia perdido a esperança eis que a porta se abre. Dela saiem duas raparigas: ela.. e provavelmente uma das primas! Seguem na direcção contrária.
Rapidamente ele liga o carro
aproxima-se por trás
abre o vidro
prepara o discurso ("preciso de falar contigo 10 minutos, pode ser?")
abranda e...





Regressou a casa, leve como uma pena. Mais forte que nunca e, incrívelmente, alegre.
Essa alegria era a alegria de quem tinha feito uma descoberta, pois foi nessa noite que ele destruiu de uma só assentada três dos maiores mitos da humanidade.
1 - A intervenção divina traduzida nuns rasgos de sorte irónicos ou coincidências sádicas.
2 - O medo que ficou numa berma de estrada algures perto de uma aldeia.
3 - O destino, que transformou a rapariga suspeita numa qualquer desconhecida no momento da abordagem, e que de qualquer forma nunca mais os juntou.


A

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