sábado, 30 de janeiro de 2010

D'o Actor

A criação de uma vida. De uma personalidade. De uma história.

A possessão...

Deixar que o meu corpo seja tomado por alguém. Que sente, que fala, que vibra e que ama. E que não sou eu.

É um crime voluntário. Um sacrificio. Uma arte.


* * * *


O cenário é tão típico. É tão típico que parece falso. Que parece enjoativo. O local é obscuro. Dir-se-ia que fui transportado para os anos 50. Mesmo as cores parecem não existir. Os azuis são azul-acinzentado, os amarelos são amarelo-acinzentado, os olhos são avelã-acinzentado e a entrada do velho teatro vai acendendo e apagando luzes meio fundidas num gesto muito pouco convidativo.

Seria a estreia da peça. Da peça em que me propus participar como actor principal. Nunca fui grande actor. Sempre me achei um Indiana Jones do mundo artístico, alinhando em qualquer aventura por muito descabida que pudesse parecer.
Desta vez tinha colocado a fasquia muito alta. Uma peça clássica super complicada, em que faria de narrador e de personagem principal ao mesmo tempo. Todas as outras personagens apareceriam a interagiriam comigo durante escassos momentos enquanto eu ia navegando pelas reviravoltas do texto, ora suaves, ora incompreensíveis.

Sim, incompreensíveis... Ali estava eu naquele momento. No pico do pensamento da semana. A pensar em formas de aligeirar a questão inultrapassável que se me afigurava. 4 meses de preparação possível, aos quais eu tinha dedicado apenas umas meras horas, muito típicas de um amadorzeco de um grupo de teatro de escola secundária. Era eu esse. Mas agora nem valia a pena pensar no caso.

A verdade, é que aquele texto de 150 páginas resolveu não se fixar nas ligações entre os neurónios, no par de vezes que o li. Pronto, se calhar um par de vezes não chegava mesmo... Eu sabia-o desde o início. E ali estava, prestes a entrar num auditório cheio de 600 de pessoas. Chegavam-me rumores da presença de amigos que não via há anos, personalidades do mundo das artes, amores perdidos... Toda uma série de especiarias de plateia engendradas perfeitamente para tornar aquele no espectáculo mais aterrador que eu poderia ter participado.

- Personagem H!! Está na hora... Arrasa com eles! - Dizem-me


"Arrasa com eles", pff... Se imaginassem...
Dirijo-me para o palco e... Numa atitude desesperada pego numa estante de música que para lá estava perdida e na pasta que tinha 150 folhas soltas - o texto.

Entro no palco... Eu, a minha estante e o meu texto. As únicas coisas no mundo!
E um silencio aterrador... Morto...
O palco é a personaficação da arena romana. O artista será sacrificado...

Faço questão de colocar a estante bem a meio do palco, tiro as folhas da pasta e coloco-as em cima da estante numa atitude serena e natural. Mando a pasta para longe.

Querem uma peça ou querem um sacrificio? - pensava - pois eu não quero um sacrificio. Vamos à peça!



Começo a ler... Primeiro o narrador, depois a personagem principal, depois de novo o narrador, depois virar a página, depois a personagem principal duas páginas e depois virar uma terceira. Por esta altura os nervos já se tinham dissipado completamente e eu fazia o que de melhor sabia fazer. Estar solto num palco, representar para mim próprio, ser sincero na representação e ter os sentidos cem por cento alerta para todos os pequenos possíveis equivocos. Mexer um pouco os braços, as ancas, as pernas, dar um toque na estante com um pé e...

Espera lá... Um toque na estante com o pé?


Para meu incrível espanto, a estante tinha abandonado a sua amada posição de repouso e desferia uma trajectória tipo estrela cadente enquanto folhas voavam numa liberdade aterradora. Adeus e lá vão elas...

À pressa tento recolher desastradamente todo o emaranhado de folhas. Coloco-as em cima da estante atabalhoada e nervosamente. Cheio de medo começo a debitar texto sem pensar em mais nada. Tudo agora era nervoso e frágil, personagem, narrador, depois personagem de novo e depois página seguinte ee... página seguinteeee... onde estará ela? onde estará ela? Procuro incessantemente no emaranhado de 150 folhas, umas de lado, outras do avesso outras de lado e do avesso... Barulho de cadeiras, pessoas a falar, a rir, a lamber os dedos.


Acordarei?

Acordarei?

Acordarei?



Acordo...





A

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

D'o Lado

Por aqui a imaginação é tipo cosmos, tão vasta quanto vazia,

Por aqui a vida descose-se pelas linhas que unem o branco dos traços ao negro da estrada,

Por aqui brilhará sempre o Sol, nunca havendo espaço para a Lua e a sua personalidade enfeitiçante,

Por aqui a realidade é um farol e o absurdo é uma caneta,

Por aqui os números de telefone recolhidos ontem à noite não passarão de um bolso cheio de papéis de pastilhas,

Por aqui a música parte da cabeça e são os dedos atentos que a vão escutando e perscrutando,

Por aqui é uma cassete antiga. E debita a fita que no momento seguinte a evita. Limitando-se a morrer a meus pés, num emaranhado imóvel e inutilizável de meio centimetro de largura. Num insignificante nó eterno, desafiante e a sorrir com ar de caso. Mas que sufoco... Que tragédia... Ainda à pouco estavam pessoas a cantar lá dentro!

Por aqui seria o Lado certo,

Por aqui também.

E por aqui?!





Penso que também...



A

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

D'a Morte

Eu e tu, com a morte atrás, a caminho do amor...




Não tenho medo da morte.
Nasci a temê-la. Fui criado para fugir aos seus designios estranhos. Cresci a fugir dela. Sempre a fugir. Sonhamos e vivemos e tentamos sempre fugir à sua frente.

Até hoje. Hoje acordei cansado de fugir. Acordei com um brilho nos olhos e uma ideia clara. A morte é fraca! A morte é a maior escrava do verdadeiro e eterno inimigo da espécie humana: o destino.

Quero destruir de vez a imagem da figura imponente sem rosto, vestida com um manto negro todo ratado. Que se lhe tire a gadanha e se substitua por um caderno de apontamentos, onde vai verificando em que ponto do globo é o seu próximo trabalho, porque esta morte... Esta morte é trabalhadora da função pública há mais de 200.000 anos. É a imagem perfeita do trabalhador explorado. Daquele que dá a cara. O Destino encarrega-se de lixar a vida a toda a gente e depois envia uma simples Morte para arcar com as culpas todas.
Trabalha há 200.000 anos sem um único dia de folga. Sem um único dia diferente. Sem uma única variação na sua negra rotina.

Imaginem a vida social d'a Morte... Sempre a tentar aproveitar os escassos milésimos de segundo em que não há nada para fazer. Sempre a tentar explicar que apenas é a morte porque precisa de viver de algo. Porque só sabe fazer aquilo. Mas que na verdade nada tem contra a espécie humana, contra as pessoas. Que até simpatizou com uns quantos. Talvez se tenha mesmo apaixonado por alguém a quem invariavelmente terá dado o descanso eterno. Talvez o tenha feito numa noite de luar veranesca e o tenha mirado umas quantas vezes de cima abaixo. Com o brilho no canto do olho, típico de quem se emociona facilmente, mas ainda assim é dotado de um sentido de responsabilidade infinito. Que injustiça...

É por isso que trago sempre uma garrafa de Bourbon comigo. Sei que um dia ela aparecerá para me levar, e nesse dia não serei apanhado desprevenido. Desinquietá-la-ei da sua rotina milenar, serei chato e casmurro e obrigá-la-ei a beber um valente copo daquele whiskey...

Penso que nunca ninguém lhe terá feito algo identico.

Penso que vai gostar.




A

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

D'a Rotina

Às vezes questiono-me...

Porque insistirei em falar sobre coisas acerca das quais nada sei e com as quais nada quero?



A

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

D'a Psicologia

Personagem F - E então?

Personagem G - E então... O quê?

F - E então... Qual é a tua história?

G - Como assim?

F - Como assim?! Assim que te vi a entrar, assim que te olhei de cima abaixo, que te vi o negro dos olhos, pensei: este tipo tem uma história e só pode estar aqui por ela.

G - História... Nunca fui muito bom contador de histórias...

F - Mas tens uma..

G - Hei-de ter uma qualquer, mas nem é nada de especial. As pessoas à minha volta têem sempre histórias muito melhores, mais interessantes e emocionantes do que a minha. A sua por exemplo será melhor concerteza.

F - Podes-me tratar por tu.

G - A tua será melhor...

F - ...

G - ...

F - O que fazes?

G - Neste momento estou só por aqui, sentado neste sofá.

F - E da vida? Passas a vida sentado em sofás?

G - Sou copywritter. Ou só copy, como preferires...

F - Hmm, parece interessante. Como corre?

G - Corre bastante bem. É a única coisa à qual me dedico de corpo e alma e na qual obtenho bons resultados. Permite-me levar uma vida descansada, com os meus abusos e os meus caprichos. As minhas tardes livres a partir das 17h, o meu ginásio, o meu rés-de-chão com jardim, as minhas mobílias Ikea, as minhas roupas da Boss, os meus whiskies Jameson, enfim, um típico sonho nova-iorquino, talvez. Mas mesmo aqui em Lisboa!

F - Incrível...

G - O quê?

F - A tua vida... Eu por exemplo não tenho nada disso e...

G - E...

F - E apesar de tudo. Apesar da vida que levo, sinto-me feliz.

G - HEY! Eu também me sinto feliz... Que história é essa?

F - Lamento desiludir-te mas com essa ladaínha só te enganas a ti próprio.

G - Não estou a enganar ninguém. O que te leva a dizer isso?

F - Mas que raio. Lembra-te de onde estás! Não há ninguém que entre por aquela porta que não se sinta sozinho! Eu sei-o! Sou eu que os recebo a todos e os oiço!

G - Não adianta esconder então...

F - A partir do momento em que entraste que deixaste de o esconder. Sabes isso não sabes? Eu sei que sabes... Já percebi que és inteligente a esse ponto

G - Sim... Sei...

F - Estás disposto a falar e a deixar-me ajudar-te então?

G - Não estava bem à espera disto...

F - Estavas à espera de quê?

G - De ser forte...

F - Sim, sim... Todos o querem ser, nos primeiros cinco minutos.

G - Foram só cinco?

F - Foi um bocadinho mais...

G - Seis?

F - Foi... O suficiente. Não penses mais nisso. Não estou aqui para te abalar o pouco ego que te sobra. Fala-me dos teus amigos por exemplo.

G - Acho que não tenho... Desapareceram todos por volta dos vinte e cinco. Depois vamos ficando com colegas de trabalho e conhecidos... Montes de conhecidos... Triliões de conhecidos.

F - Com quem conversas então?

G - Normalmente com a malta da empresa.

F - Sobre gajas praí?

G - Também... Mas mais sobre trabalho.

F - Com quem conversas sobre ti então?

G - Hmm.. Contigo..

F - E...

G - E... Hmm.. Mais ninguém, acho eu.. Pelo menos ultimamente.

F - Porque não o fazes?

G - Não sei. Acho que não conheço as pessoas suficientemente bem.

F - Tretas. Estás-me a dizer que não falas sobre ti com as pessoas com que te dás oito horas por dia, todos os dias... E no entanto, aqui estás tu a contar tudo a alguém que conheces há meia hora.

G - Mas tu percebes disto. Provavelmente terás anos e anos de experiência. A aturar tipos como eu. As pessoas têem a sua vida. No fundo devem ter tantos problemas com elas próprias como eu. Para que é que quererão ouvir as minhas choradeiras? A única coisa que ganharia com isso era perder os conhecidos que ainda me vão sobrando.

F - Errado. No fundo, tu é que te imaginas fechado. Construiste toda essa ideia sobre ti para que não tenhas de ter trabalho com relações humanas. Basta darem-te um pouco de corda e lá vem a fita do filme toda, não é? E essa histórias de as pessoas não quererem ouvir... Bem, a amizade é precisamente isso. Quando começas a confiar coisas que são apenas tuas e as pessoas começam a sentir que têem a tua confiança, não achas?

G - Eu sei lá... Tu é que percebes disto.

F - E namorada? Não tens uma namorada?

G - ...

F - Que pergunta a minha... Claro que não tens! Porque é que não arranjas uma namorada? Já te olhaste ao espelho? És bastante interessante até! Conheço centenas de tipos mais horriveis que tu e têem filhos até ao tecto, de 3 e 4 mulheres diferentes. Sim, nos tempos que correm não esperes ficar 50 anos com alguém... Mais vale aceitar a realidade.

G - Esquece isso.

F - Fazia-te muito bem.

G - Perdi a vontade de desiludir mais pessoas. Acho que ninguém o merece.

F - Desiludir?

G - Sim! Desapontar. Levar as pessoas a pensar que sou o tipo perfeito quando sou apenas um poço de desilusões.

F - Mas pareces ter tanto para dar..

G - E vou dando. Relações relampago. É o melhor que há. Numa noite és feliz, fazes alguém feliz e deixas uma imagem bastante bonita do que poderia ser. Uma imagem bonita que fica para sempre. Uma imagem que não será destruída pela desilusão.

F - Acho que tens razão...

G - Também sentes isso?

F - Desculpa. Quem faz as perguntas sou eu.

G - Ok...

F - Que idade tens mesmo?

G - Isso interessa?

F - Sim interessa...

G - Tenho 27

F - Foi a tua primeira vez, não foi?

G - Primeira vez? Como assim primeira vez?! Claro que não foi a primeira vez!

F - Não digo a primeira vez que o fizeste! Mas... A primeira vez que fizeste isto.

G - Que estive com... Hmm... Com uma...

F - Que estiveste com uma puta sim.

G - Sim, foi...




A

domingo, 3 de janeiro de 2010

D'o marinheiro e D'a flôr

Personagem D - Não sei o que te diga...

Personagem E - Não digas nada. Não te preocupes

D - Enfim... É um pouco egoista, mas ainda assim fico-me a sentir um bocado melhor com o facto de o desenvolvimento ter sido esse.

E - Porquê?

D - Porque sinto que assim talvez não tenha estragado nada. Parece que já estava tudo tão danificado entre vocês.

E - Pois, acho que podes ficar descansado quanto a isso. Não foste realmente decisivo nessa situação.

D - Sim...

E - És apenas um marinheiro! Um marinheiro dócil e atraente.

D - Ahah! Sim, empenho-me nisso... Tu já és dócil e atraente, talvez te devesses tornar marinheira também.

E - Sim. Acho que dava uma boa marinheira. O litoral, as ondas, a brisa... Sempre senti uma ligação. Embora nem viva perto do mar.

D - Eu também não. Não precisas

E - Eu sei...

D - Só tens que te desprender do mundo e és uma marinheira... Dócil e atraente.

E - Eh... Podia viver assim.

D - Não podia viver de outra forma.

E - Acho que nasceste para viver assim. E acredita que quase ninguém o aguenta.

D - Eu sei. É o conforto...

E - O conforto? Tu não queres conforto!

D - É o conforto que prende a mente das pessoas. Mas o conforto será para sempre uma espiral descendente. O desconhecido é muito mais duro por vezes, mas nunca será uma espiral descendente.

E - Tens razão..

D - Mas eu costumava também procurar o conforto, tal como todos. Se eu me mudei acho que qualquer um o pode fazer.
A verdade é que há sempre imensa coisa inesperada a acontecer. É uma vida constante cheia de filmes e de situações.

E - E eu que não percebia porque insistiamos tanto em adensar todo este filme.

D - Com filmes tem tudo mais piada... Acho que a nossa mente é fodida a esse ponto sim.

E - Sabes que um dia isso te vai saír caro.

D - Ai sim? Muito obrigadinho então! Simpatia...

E - Sim. Penso que neste preciso momento algo de complicado e inseguro pode estar a ser congeminado sobre o teu destino. Tudo devido a essa forma solta com que vives as pessoas e o mundo no geral.
Vocês, marinheiros, vivem uma vida diferente. Sempre com os olhos postos no horizonte. Na incessante busca de um recorte de terra onde o mar se confunde com o céu. Tão focados nisso que quando ele realmente aparece é quase sentido como uma desilusão.

D - Deixas-me às escuras...

E - É mesmo assim que eu gosto!

D - Ahah... Eu é que sou o marinheiro. Eu é que deixo as miudas loucas e confusas.

E - Sim, não fosse eu a rapariga flôr de macieira.

D - Sou imune a esse tipo de flores... E às outras todas também.

E - Fico feliz em saber isso. No entanto, talvez estejas demasiado confiante. Ainda aparece por aí uma espécie rara, daquelas que se dão bem no mar.

D - Já apareceu... E já foi levada com a corrente.
Acho que sou livre.
Mas sim, posso-me tramar. Tento lutar bastante contra isso. Para que o meu oceano nunca tenha fim.

E - Oh, lutar e proteger o que é nosso é sempre um caminho.

D - Sabes que a maior parte das pessoas não o diria. Pelo menos não nesta circunstância.

E - Sei-o bem.




A & R