segunda-feira, 3 de maio de 2010

D'o Desvio

E ao fim de tanto tempo,

tantas ruas,
tantas caras,
tantos sons,
tantos quilómetros,
tantas papoilas,
tantas paisagens,

tantos anos...

Cai finalmente em si.
Olha para trás e pergunta-se, como foi ele parar ali. A uma cidade que não é sua, numa rua em que o macadame se confunde com o cinzento molhado dos paralelos.

Tudo seria da mesma cor naquela noite e não seria apenas por um mero acaso.

Clinicamente descompensado, dir-lhe-iam caso houvesse sequer alguém por perto, quanto mais um médico. E naquele momento fervorosamente contava as gotas de chuva que iam caíndo, vertendo uma lágrima mais intensa por cada uma que falhava.

"Dizem que é preciso parar..."

Mas ele nunca parara. O verbo VIVER corria-lhe nas veias como um veneno que o levaria a cometer o suicidio mais longo da história. Era para isso que ele tinha vivido. Para sentir o calor do coração a bater mais forte em cada ofegante respiração. Para inspirar intensidade por aqueles pequeninos olhos que doravante só veriam imagens mentais perturbadas.

Ao renegar uma vida simples e eficaz, propusera-se a construír um emaranhado de vivências. Estas haviam calcificado e formado corredores labirinticos onde assentava toda a sua já de si frágil estrutura emocional.

Uma casa, um cão, uma piscina... e uns olhos bonitos para a morte. Tudo o que ele sempre negou. A necessidade de refúgio desprezada até ao limite das suas discussões infindáveis, agora pronta a desabar por cima das suas trémulas pernas.

Falha mais uma gota... e outra... e ruge... e mais três... e um desespero...

e num instante apenas...

T
o
d
a
s

c
a
i
e
m

a
o

c
h
ã
o
!
....................... (num estrondo que lamento ver-me impossibilitado de descrever)



Com elas, também ele cai desamparado... Chora... E pergunta porquê.

"Porquê?"

"Porquê eu? Onde terei falhado? Onde é que todos acertaram e eu falhei? Como pode a vida simplificada ter tão pouco significado para mim e no entanto todos à minha volta conseguirem usufruir dela e... e vivê-la... e quase serem felizes. Não faz qualquer sentido"

...


* * * *


- Aqui estás tu... Procurei-te por todo o lado. Da próxima vez que beberes desta forma vê se aterras na cama e não na ombreira da porta, amor. Anda. Os miudos querem que os leves ao McDonald's almoçar...






A

segunda-feira, 12 de abril de 2010

D'o Amor

Com o Sol e os dias agradáveis, chegam também uma série de rituais sazonais que se podem observar diáriamente pelas mais variadas urbes mundiais. Penso que será o momento ideal para tentar dissertar ligeiramente sobre um desses rituais. Provavelmente aquele que mais depressa saltará à imaginação ao pensar na curta lista de rituais estivais.

Falo obviamente das infindáveis discussões e tratados filosóficos sobre a palavra amor, que se efectivam por esses cafés e bares de conceito (concept bars) dos centros urbanos efervescentes. Magotes de pré-adultos e solteiras cinquentonas fumam fervorasamente enquanto sorvem chá ou cerveja nos dias de loucura.
O que é o amor? Para além de ser a questão que nos permite estar permanentemente em questão, o que mais poderá ele ser? Como é constituido? Que elementos integra? Qual a sua origem? No fim de contas, como surge o conceito dentro das nossas cabeças?

Abstraindo-me de toda a arte e imaginação, e utilizando apenas a racionalização, o bom senso e a observação participante, tentei elaborar uma lista dos vários ingredientes que poderiam figurar no caldeirão do amor. E como ele ferve...

1- Filmes da Disney numa fase de crescimento importante. Vulgo, entre os 4 e os 8 anos. Na verdade, o, doravante designado, "amor Disney", é, para toda a presente geração de jovens adultos, o ideal tipo do amor!!!! O amor Disney é tudo aquilo que sonhamos numa relação. E precisamente aquilo que nunca teremos. Não é de espantar, afinal um termo tão complicado de definir como "amor" apenas poderia ter sido adquirido através de suporte visual e conteúdo exemplificativo. Obviamente que o exemplo está bastante distante da realidade, mas quando nos apercebemos de tal já somos demasiado adultos para conseguir anular conceito tão enraizado.

2- Sinais eléctricos e quimicos, transmitidos por vários orgãos do nosso corpo. São bons... Oh se são... Provocam uma sensação de bem estar e de elevação. São pequenas massagenzinhas no nosso ego. A questão das borbuletas no estomago não é apenas metáfora, mas sim um verdadeiro sintoma da reacção química que se passa no interior do nosso corpo. Como é óbvio não há bela sem senão, pois se não, vejamos do que estamos a falar: um químico que é absorvido pelo nosso corpo, provoca uma sensação incrível de bem estar e como tal, tem propriedades viciantes. Sim, talvez pudesse ser vendido de forma ilegal por mal encarados em esquinas do Bairro Alto.

3- Instinto. Nos quais incluo o desejo sexual e o desejo maternal. É algo a que não podemos fugir. Todos os animaizinhos do lote Homo Sapiens Sapiens calharam com esta característica e que os torna tão especiais e bonitos. São necessidades básicas inerentes à natureza humana. No entanto, são ligeiramente desprezadas em contexto social desenvolvido. O instinto, por ser irracional, amedronta a sociedade organizada. É possivel que seja esta a razão mais profunda para a criação do conceito amor. Um conceito que, no fundo, atende estes desejos e fá-lo de forma não ofensiva para a sociedade, chegando mesmo a ser louvável.

4- Pressões sociais. Se toda a gente ama e vive em casais heterossexuais com dois filhos, um rapaz mais velho e uma rapariga mais nova. Obviamente que quem não o fizer sentirá uma enorme pressão social. Não tentem não o fazer. Na verdade nem é uma questão de escolha, o vosso inconsciente já o decidiu por vocês.



Conclusão: A lista não é extensiva. Muita coisa faltará. Há no entanto algo que me preocupa. O amor no fundo, não me parece nada espiritual nem transcendental. Não me parece divino. Não me parece cósmico. Não me parece mitológico. Não me parece paranormal. Não me parece inexplicável.

Pergunto-me... Poderá o amor ser apenas porque...


dá jeito?




A

quarta-feira, 7 de abril de 2010

D'a Vida Secreta

À janela, agora escuto a noite. Toco a Lua.

É a ela que presto contas diariamente. Estranho dizer diariamente, quando claramente o faço sempre de noite.

A ela presto contas "noctariamente" talvez.

Ela que se dá todas as noites a todos. E no entanto ao analisarmos a questão, deparamo-nos com uma face inteira de segredos. Isto admitindo a existência de Luas cheias diárias. Mas não. Nem a isso temos direito. Deparamo-nos então com um corpo que se mostra todos os dias mas em parcelas inferiores a 50% da superfície total. Já para não falar de todo o seu interior.

Será de ti que aprendemos? Terei aprendido de ti?



Dorothy, a minha ex-mulher, costumava dizer que eu era demasiado perfeito. Que era impossível acompanhar-me. Já não o sinto no entanto. A perfeição abandona-me diáriamente. Sei que fui perfeito, sei que anos de gestão de bom senso me deram uma capacidade de exteriorização seguida de auto-crítica e auto-controlo. O rei do Quociente Emocional.

Já não o sinto no entanto. Minto... E... Minto-lhe... E... Sinto que me minto também.

O que começou com um pequeno jogo tornou-se agora grande demais para eu o suportar. Vou aguentando as investidas da minha consciência, as horas de sono em branco, as inquisições da Lua (quem é que ela julga que é para me falar sobre sinceridade?). Mas ao mesmo tempo sinto a minha estrutura emocional a ceder. Amei o pecado mas estou arrependido. Eu... Eu que era demasiado perfeito para ser acompanhado.

E tu? E eles? Eu que era demasiado perfeito para ser acompanhado faço-o! E todos? A realidade que conhecemos dos outros é em grande parte construída através da forma como cada um se nos apresenta. Daquilo que as pessoas nos dizem.

PROBLEMA: Todos o sabem!

E tendo eliminado a existência de Deus e do julgamento final, resta-nos prestar contas à nossa consciência (nossa cúmplice na jogada) e... à Lua, que não é menos puta que cada um de nós.

Temo por achar que se eu construí um mundo imaginário para alimentar o meu próprio egoísmo, todos o farão. E se calhar... ela... de cada vez que se desculpa de forma esfarrapada e pouco convincente, fá-lo inadvertidamente para se convencer inconscientemente de algo que nem sente.

Talvez nem goste de Sushi e o faça só para me agradar.
Talvez ela não goste realmente do meu sinal ao lado do olho esquerdo, como tantas vezes diz que gosta.
Talvez nem lhe agrade por aí além o sexo comigo mas, sendo a única coisa que ela vai tendo...
Talvez nem seja a única coisa que ela tem.
Talvez tenha insistido tanto no fim de semana em Sevilha para fugir de uma possível Vida Secreta que tem.
Talvez me use só para não pensar tanto num possível verdadeiro amor da sua vida.

Mas de novo, nunca serei muito melhor que isso... A verdade é que eu próprio mantenho há meses uma vida secreta... E cada vez menos aguento o peso que a minha consciência exerce sobre mim.





Apresentei-me a ela como sendo médico quando não passo de um mero dentista.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

D'a Personagem

No outro dia, caminhava eu tranquilamente por uma das ruas da minha cidade quando, inadvertidamente, dou de caras uma das minhas personagens!

O seu nome é personagem B, é uma rapariga mais ou menos da minha idade e penso que nunca falei dela.

Estranhei ter visto assim no meio da rua, a passear de forma independente a mim, uma criação minha. Não achei estranho que ela passasse e nem reparasse em mim da forma como eu reparei nela.

Na verdade, não me lembro porque motivo a criei. Nunca lhe dei uma história, nunca lhe dei um principio, uma razão de existir. Criei-a apenas como sendo uma pessoa normal com quem eu poderia tomar uns copos, algo que, por motivos óbvios, nunca aconteceu. Como sendo uma extensão de mim.

Como se fosse alguém cuja história pudesse ser escrita comigo.
E agora encontro-a na rua...

Cada vez compreendo menos a arte de contar histórias.




A

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

D'o Homem Que Podia Ter Qualquer Mulher No Mundo...

... menos uma.


* * * *

Personagem I tem uma história singela e atípica. Desde muito novo se apercebeu que tinha um poder incrível diante das mulheres. Sem nunca ter investido muito nesse assunto, sem privar imensamente pela beleza, ou pela conversa, ou pelo engenho, simplesmente nasceu com o dom de ser desejado por todo e qualquer elemento do sexo feminino.

Para nós, meros humanos sem grandes qualidades fora do comum, pensar neste homem será sempre motivo de inveja. Ser capaz de ter qualquer mulher no mundo é sinónimo de poder. É sinónimo de uma vida sexual preenchida, é sinónimo de capacidade de persuasão para com o sexo oposto e, também com os membros do seu próprio sexo, já que todos os homens o admiram tanto quanto as mulheres o desejam.

Ao atingir a maturidade, rapidamente se inteirou do seu poder. Não se limitando a aceitá-lo, resolveu procurar mais informações sobre a sua estranha situação. Visitou vários centros de medicinas alternativas e ciências ocultas e paranormais.
Ninguém lhe soube dizer nada excepto uma macumbeira muito velhota que vivia numa casinha de palha com um cheiro engraçado.

"Meu filho, não sei como nem porque terás ficado preso a tamanho poder divino. Isto é algo que apenas está reservado para os deuses que nos observam lá de cima. Para um mortal, viver desta forma, será sempre o maior dos dons e a maior das maldições.
Aproveito também para te avisar de que o teu poder não funciona numa determinada circunstância. Numa única situação que é incontrolável para ti. Há uma mulher no mundo que não poderás ter. Há uma mulher no mundo, acerca da qual eu não tenho qualquer informação que, estranhamente, não será afectada pelo teu encanto."


* * * *

Certo dia resolvi questionar a Personagem I acerca de algo que já vinha a pensar há vários dias:

Autor - Personagem I, e amor?

Personagem I - Amor? O que tem?

A - Estive a penar... Partimos de um principio que podemos tomar como absoluto, que é o facto de o amor se dar bem em terrenos complicados. Ou seja, as relações mais complicadas e improváveis serão sempre aquelas que nos entusiasmarão mais. O impossivel será sempre o próximo passo a dar, pois é essa a mentalidade do ser humano racional e ambicioso.
Se todas as mulheres te oferecem um desafio igual, bonitas, feias, esculturais, disformes, solteiras, casadas, viuvas, ruivas, loiras, morenas, empregadas de balcão ou gestoras de recursos humanos poderosas e com ar de cabra. Como te poderás apaixonar por alguma delas? Se todas elas agirão exactamente de forma igual ao pé de ti, nunca encontrarás ninguém que se destaque das demais...
No entanto, sabemos que há uma pessoa que se destaca das demais. Foi-te informado há vários anos que há uma mulher no mundo que não reagirá da mesma forma. Tanto quanto sabemos pode mesmo ser a mulher mais improvável que existe. Pode ser uma alcóolica anónima, ou uma agricultura nepalesa, ou uma prostituta de Bangcock, ou uma merceeira chinesa, ou uma cozinheira italiana ou uma chanceler alemã!
Diz-me, posso estar redondamente enganado e iludido com toda esta situação mas, é possivel que ames a única mulher que não podes ter na vida? É possivel que a procures insessantemente em cada dia que passas na rua e que olhes para todas as mulheres à tua volta? Em cada minuto em que procuras um único olhar no meio da multidão que se pareça desviar do teu? É possivel que ames uma mulher que nunca tenhas visto na vida e que não fazes ideia do que faz, ou de onde vive, ou como é? É possivel que a procures no meio de 6,4 biliões de pessoas e que, no milagre improvável de a achares, saberes que ainda assim nunca a terás?

I - Sim...

E - Triste sina a tua...



* * * *


Personagem J é muito parecido com personagem I só que no caso dele não houve mesmo nenhuma excepção à regra. Nenhuma mulher que pise este planeta o negará nunca.

Personagem J é gay.





A

sábado, 30 de janeiro de 2010

D'o Actor

A criação de uma vida. De uma personalidade. De uma história.

A possessão...

Deixar que o meu corpo seja tomado por alguém. Que sente, que fala, que vibra e que ama. E que não sou eu.

É um crime voluntário. Um sacrificio. Uma arte.


* * * *


O cenário é tão típico. É tão típico que parece falso. Que parece enjoativo. O local é obscuro. Dir-se-ia que fui transportado para os anos 50. Mesmo as cores parecem não existir. Os azuis são azul-acinzentado, os amarelos são amarelo-acinzentado, os olhos são avelã-acinzentado e a entrada do velho teatro vai acendendo e apagando luzes meio fundidas num gesto muito pouco convidativo.

Seria a estreia da peça. Da peça em que me propus participar como actor principal. Nunca fui grande actor. Sempre me achei um Indiana Jones do mundo artístico, alinhando em qualquer aventura por muito descabida que pudesse parecer.
Desta vez tinha colocado a fasquia muito alta. Uma peça clássica super complicada, em que faria de narrador e de personagem principal ao mesmo tempo. Todas as outras personagens apareceriam a interagiriam comigo durante escassos momentos enquanto eu ia navegando pelas reviravoltas do texto, ora suaves, ora incompreensíveis.

Sim, incompreensíveis... Ali estava eu naquele momento. No pico do pensamento da semana. A pensar em formas de aligeirar a questão inultrapassável que se me afigurava. 4 meses de preparação possível, aos quais eu tinha dedicado apenas umas meras horas, muito típicas de um amadorzeco de um grupo de teatro de escola secundária. Era eu esse. Mas agora nem valia a pena pensar no caso.

A verdade, é que aquele texto de 150 páginas resolveu não se fixar nas ligações entre os neurónios, no par de vezes que o li. Pronto, se calhar um par de vezes não chegava mesmo... Eu sabia-o desde o início. E ali estava, prestes a entrar num auditório cheio de 600 de pessoas. Chegavam-me rumores da presença de amigos que não via há anos, personalidades do mundo das artes, amores perdidos... Toda uma série de especiarias de plateia engendradas perfeitamente para tornar aquele no espectáculo mais aterrador que eu poderia ter participado.

- Personagem H!! Está na hora... Arrasa com eles! - Dizem-me


"Arrasa com eles", pff... Se imaginassem...
Dirijo-me para o palco e... Numa atitude desesperada pego numa estante de música que para lá estava perdida e na pasta que tinha 150 folhas soltas - o texto.

Entro no palco... Eu, a minha estante e o meu texto. As únicas coisas no mundo!
E um silencio aterrador... Morto...
O palco é a personaficação da arena romana. O artista será sacrificado...

Faço questão de colocar a estante bem a meio do palco, tiro as folhas da pasta e coloco-as em cima da estante numa atitude serena e natural. Mando a pasta para longe.

Querem uma peça ou querem um sacrificio? - pensava - pois eu não quero um sacrificio. Vamos à peça!



Começo a ler... Primeiro o narrador, depois a personagem principal, depois de novo o narrador, depois virar a página, depois a personagem principal duas páginas e depois virar uma terceira. Por esta altura os nervos já se tinham dissipado completamente e eu fazia o que de melhor sabia fazer. Estar solto num palco, representar para mim próprio, ser sincero na representação e ter os sentidos cem por cento alerta para todos os pequenos possíveis equivocos. Mexer um pouco os braços, as ancas, as pernas, dar um toque na estante com um pé e...

Espera lá... Um toque na estante com o pé?


Para meu incrível espanto, a estante tinha abandonado a sua amada posição de repouso e desferia uma trajectória tipo estrela cadente enquanto folhas voavam numa liberdade aterradora. Adeus e lá vão elas...

À pressa tento recolher desastradamente todo o emaranhado de folhas. Coloco-as em cima da estante atabalhoada e nervosamente. Cheio de medo começo a debitar texto sem pensar em mais nada. Tudo agora era nervoso e frágil, personagem, narrador, depois personagem de novo e depois página seguinte ee... página seguinteeee... onde estará ela? onde estará ela? Procuro incessantemente no emaranhado de 150 folhas, umas de lado, outras do avesso outras de lado e do avesso... Barulho de cadeiras, pessoas a falar, a rir, a lamber os dedos.


Acordarei?

Acordarei?

Acordarei?



Acordo...





A

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

D'o Lado

Por aqui a imaginação é tipo cosmos, tão vasta quanto vazia,

Por aqui a vida descose-se pelas linhas que unem o branco dos traços ao negro da estrada,

Por aqui brilhará sempre o Sol, nunca havendo espaço para a Lua e a sua personalidade enfeitiçante,

Por aqui a realidade é um farol e o absurdo é uma caneta,

Por aqui os números de telefone recolhidos ontem à noite não passarão de um bolso cheio de papéis de pastilhas,

Por aqui a música parte da cabeça e são os dedos atentos que a vão escutando e perscrutando,

Por aqui é uma cassete antiga. E debita a fita que no momento seguinte a evita. Limitando-se a morrer a meus pés, num emaranhado imóvel e inutilizável de meio centimetro de largura. Num insignificante nó eterno, desafiante e a sorrir com ar de caso. Mas que sufoco... Que tragédia... Ainda à pouco estavam pessoas a cantar lá dentro!

Por aqui seria o Lado certo,

Por aqui também.

E por aqui?!





Penso que também...



A

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

D'a Morte

Eu e tu, com a morte atrás, a caminho do amor...




Não tenho medo da morte.
Nasci a temê-la. Fui criado para fugir aos seus designios estranhos. Cresci a fugir dela. Sempre a fugir. Sonhamos e vivemos e tentamos sempre fugir à sua frente.

Até hoje. Hoje acordei cansado de fugir. Acordei com um brilho nos olhos e uma ideia clara. A morte é fraca! A morte é a maior escrava do verdadeiro e eterno inimigo da espécie humana: o destino.

Quero destruir de vez a imagem da figura imponente sem rosto, vestida com um manto negro todo ratado. Que se lhe tire a gadanha e se substitua por um caderno de apontamentos, onde vai verificando em que ponto do globo é o seu próximo trabalho, porque esta morte... Esta morte é trabalhadora da função pública há mais de 200.000 anos. É a imagem perfeita do trabalhador explorado. Daquele que dá a cara. O Destino encarrega-se de lixar a vida a toda a gente e depois envia uma simples Morte para arcar com as culpas todas.
Trabalha há 200.000 anos sem um único dia de folga. Sem um único dia diferente. Sem uma única variação na sua negra rotina.

Imaginem a vida social d'a Morte... Sempre a tentar aproveitar os escassos milésimos de segundo em que não há nada para fazer. Sempre a tentar explicar que apenas é a morte porque precisa de viver de algo. Porque só sabe fazer aquilo. Mas que na verdade nada tem contra a espécie humana, contra as pessoas. Que até simpatizou com uns quantos. Talvez se tenha mesmo apaixonado por alguém a quem invariavelmente terá dado o descanso eterno. Talvez o tenha feito numa noite de luar veranesca e o tenha mirado umas quantas vezes de cima abaixo. Com o brilho no canto do olho, típico de quem se emociona facilmente, mas ainda assim é dotado de um sentido de responsabilidade infinito. Que injustiça...

É por isso que trago sempre uma garrafa de Bourbon comigo. Sei que um dia ela aparecerá para me levar, e nesse dia não serei apanhado desprevenido. Desinquietá-la-ei da sua rotina milenar, serei chato e casmurro e obrigá-la-ei a beber um valente copo daquele whiskey...

Penso que nunca ninguém lhe terá feito algo identico.

Penso que vai gostar.




A

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

D'a Rotina

Às vezes questiono-me...

Porque insistirei em falar sobre coisas acerca das quais nada sei e com as quais nada quero?



A

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

D'a Psicologia

Personagem F - E então?

Personagem G - E então... O quê?

F - E então... Qual é a tua história?

G - Como assim?

F - Como assim?! Assim que te vi a entrar, assim que te olhei de cima abaixo, que te vi o negro dos olhos, pensei: este tipo tem uma história e só pode estar aqui por ela.

G - História... Nunca fui muito bom contador de histórias...

F - Mas tens uma..

G - Hei-de ter uma qualquer, mas nem é nada de especial. As pessoas à minha volta têem sempre histórias muito melhores, mais interessantes e emocionantes do que a minha. A sua por exemplo será melhor concerteza.

F - Podes-me tratar por tu.

G - A tua será melhor...

F - ...

G - ...

F - O que fazes?

G - Neste momento estou só por aqui, sentado neste sofá.

F - E da vida? Passas a vida sentado em sofás?

G - Sou copywritter. Ou só copy, como preferires...

F - Hmm, parece interessante. Como corre?

G - Corre bastante bem. É a única coisa à qual me dedico de corpo e alma e na qual obtenho bons resultados. Permite-me levar uma vida descansada, com os meus abusos e os meus caprichos. As minhas tardes livres a partir das 17h, o meu ginásio, o meu rés-de-chão com jardim, as minhas mobílias Ikea, as minhas roupas da Boss, os meus whiskies Jameson, enfim, um típico sonho nova-iorquino, talvez. Mas mesmo aqui em Lisboa!

F - Incrível...

G - O quê?

F - A tua vida... Eu por exemplo não tenho nada disso e...

G - E...

F - E apesar de tudo. Apesar da vida que levo, sinto-me feliz.

G - HEY! Eu também me sinto feliz... Que história é essa?

F - Lamento desiludir-te mas com essa ladaínha só te enganas a ti próprio.

G - Não estou a enganar ninguém. O que te leva a dizer isso?

F - Mas que raio. Lembra-te de onde estás! Não há ninguém que entre por aquela porta que não se sinta sozinho! Eu sei-o! Sou eu que os recebo a todos e os oiço!

G - Não adianta esconder então...

F - A partir do momento em que entraste que deixaste de o esconder. Sabes isso não sabes? Eu sei que sabes... Já percebi que és inteligente a esse ponto

G - Sim... Sei...

F - Estás disposto a falar e a deixar-me ajudar-te então?

G - Não estava bem à espera disto...

F - Estavas à espera de quê?

G - De ser forte...

F - Sim, sim... Todos o querem ser, nos primeiros cinco minutos.

G - Foram só cinco?

F - Foi um bocadinho mais...

G - Seis?

F - Foi... O suficiente. Não penses mais nisso. Não estou aqui para te abalar o pouco ego que te sobra. Fala-me dos teus amigos por exemplo.

G - Acho que não tenho... Desapareceram todos por volta dos vinte e cinco. Depois vamos ficando com colegas de trabalho e conhecidos... Montes de conhecidos... Triliões de conhecidos.

F - Com quem conversas então?

G - Normalmente com a malta da empresa.

F - Sobre gajas praí?

G - Também... Mas mais sobre trabalho.

F - Com quem conversas sobre ti então?

G - Hmm.. Contigo..

F - E...

G - E... Hmm.. Mais ninguém, acho eu.. Pelo menos ultimamente.

F - Porque não o fazes?

G - Não sei. Acho que não conheço as pessoas suficientemente bem.

F - Tretas. Estás-me a dizer que não falas sobre ti com as pessoas com que te dás oito horas por dia, todos os dias... E no entanto, aqui estás tu a contar tudo a alguém que conheces há meia hora.

G - Mas tu percebes disto. Provavelmente terás anos e anos de experiência. A aturar tipos como eu. As pessoas têem a sua vida. No fundo devem ter tantos problemas com elas próprias como eu. Para que é que quererão ouvir as minhas choradeiras? A única coisa que ganharia com isso era perder os conhecidos que ainda me vão sobrando.

F - Errado. No fundo, tu é que te imaginas fechado. Construiste toda essa ideia sobre ti para que não tenhas de ter trabalho com relações humanas. Basta darem-te um pouco de corda e lá vem a fita do filme toda, não é? E essa histórias de as pessoas não quererem ouvir... Bem, a amizade é precisamente isso. Quando começas a confiar coisas que são apenas tuas e as pessoas começam a sentir que têem a tua confiança, não achas?

G - Eu sei lá... Tu é que percebes disto.

F - E namorada? Não tens uma namorada?

G - ...

F - Que pergunta a minha... Claro que não tens! Porque é que não arranjas uma namorada? Já te olhaste ao espelho? És bastante interessante até! Conheço centenas de tipos mais horriveis que tu e têem filhos até ao tecto, de 3 e 4 mulheres diferentes. Sim, nos tempos que correm não esperes ficar 50 anos com alguém... Mais vale aceitar a realidade.

G - Esquece isso.

F - Fazia-te muito bem.

G - Perdi a vontade de desiludir mais pessoas. Acho que ninguém o merece.

F - Desiludir?

G - Sim! Desapontar. Levar as pessoas a pensar que sou o tipo perfeito quando sou apenas um poço de desilusões.

F - Mas pareces ter tanto para dar..

G - E vou dando. Relações relampago. É o melhor que há. Numa noite és feliz, fazes alguém feliz e deixas uma imagem bastante bonita do que poderia ser. Uma imagem bonita que fica para sempre. Uma imagem que não será destruída pela desilusão.

F - Acho que tens razão...

G - Também sentes isso?

F - Desculpa. Quem faz as perguntas sou eu.

G - Ok...

F - Que idade tens mesmo?

G - Isso interessa?

F - Sim interessa...

G - Tenho 27

F - Foi a tua primeira vez, não foi?

G - Primeira vez? Como assim primeira vez?! Claro que não foi a primeira vez!

F - Não digo a primeira vez que o fizeste! Mas... A primeira vez que fizeste isto.

G - Que estive com... Hmm... Com uma...

F - Que estiveste com uma puta sim.

G - Sim, foi...




A

domingo, 3 de janeiro de 2010

D'o marinheiro e D'a flôr

Personagem D - Não sei o que te diga...

Personagem E - Não digas nada. Não te preocupes

D - Enfim... É um pouco egoista, mas ainda assim fico-me a sentir um bocado melhor com o facto de o desenvolvimento ter sido esse.

E - Porquê?

D - Porque sinto que assim talvez não tenha estragado nada. Parece que já estava tudo tão danificado entre vocês.

E - Pois, acho que podes ficar descansado quanto a isso. Não foste realmente decisivo nessa situação.

D - Sim...

E - És apenas um marinheiro! Um marinheiro dócil e atraente.

D - Ahah! Sim, empenho-me nisso... Tu já és dócil e atraente, talvez te devesses tornar marinheira também.

E - Sim. Acho que dava uma boa marinheira. O litoral, as ondas, a brisa... Sempre senti uma ligação. Embora nem viva perto do mar.

D - Eu também não. Não precisas

E - Eu sei...

D - Só tens que te desprender do mundo e és uma marinheira... Dócil e atraente.

E - Eh... Podia viver assim.

D - Não podia viver de outra forma.

E - Acho que nasceste para viver assim. E acredita que quase ninguém o aguenta.

D - Eu sei. É o conforto...

E - O conforto? Tu não queres conforto!

D - É o conforto que prende a mente das pessoas. Mas o conforto será para sempre uma espiral descendente. O desconhecido é muito mais duro por vezes, mas nunca será uma espiral descendente.

E - Tens razão..

D - Mas eu costumava também procurar o conforto, tal como todos. Se eu me mudei acho que qualquer um o pode fazer.
A verdade é que há sempre imensa coisa inesperada a acontecer. É uma vida constante cheia de filmes e de situações.

E - E eu que não percebia porque insistiamos tanto em adensar todo este filme.

D - Com filmes tem tudo mais piada... Acho que a nossa mente é fodida a esse ponto sim.

E - Sabes que um dia isso te vai saír caro.

D - Ai sim? Muito obrigadinho então! Simpatia...

E - Sim. Penso que neste preciso momento algo de complicado e inseguro pode estar a ser congeminado sobre o teu destino. Tudo devido a essa forma solta com que vives as pessoas e o mundo no geral.
Vocês, marinheiros, vivem uma vida diferente. Sempre com os olhos postos no horizonte. Na incessante busca de um recorte de terra onde o mar se confunde com o céu. Tão focados nisso que quando ele realmente aparece é quase sentido como uma desilusão.

D - Deixas-me às escuras...

E - É mesmo assim que eu gosto!

D - Ahah... Eu é que sou o marinheiro. Eu é que deixo as miudas loucas e confusas.

E - Sim, não fosse eu a rapariga flôr de macieira.

D - Sou imune a esse tipo de flores... E às outras todas também.

E - Fico feliz em saber isso. No entanto, talvez estejas demasiado confiante. Ainda aparece por aí uma espécie rara, daquelas que se dão bem no mar.

D - Já apareceu... E já foi levada com a corrente.
Acho que sou livre.
Mas sim, posso-me tramar. Tento lutar bastante contra isso. Para que o meu oceano nunca tenha fim.

E - Oh, lutar e proteger o que é nosso é sempre um caminho.

D - Sabes que a maior parte das pessoas não o diria. Pelo menos não nesta circunstância.

E - Sei-o bem.




A & R